A proposta do governo federal de flexibilizar a formação de condutores está causando um verdadeiro rebuliço no setor de autoescolas. Surpresas por não terem sido sequer ouvidas pelo Ministério dos Transportes na elaboração do novo modelo de habilitação, as entidades que representam os Centros de Formação de Condutores (CFC) agora se articulam para defender o que consideram essencial: provas mais rigorosas e estrutura de formação mais acessível, sem abrir mão das aulas.
O principal argumento do ministro Renan Filho para a flexibilização do acesso à habilitação para redução de custo é que, hoje, 20 milhões de pessoas não habilitadas conduzem veículos no país. No entanto, para os profissionais do setor, o problema do trânsito brasileiro não está no número de aulas exigidas para tirar uma CNH, mas sim na falta de fiscalização das vias e no nível de exigência dos exames aplicados pelos Detrans, que raramente testam a fundo se o candidato está pronto para encarar o tráfego real.
Segundo a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), 90% dos acidentes de trânsito no Brasil são causados por falha humana, como desatenção, imperícia ou imprudência. Flexibilizar a formação sem revisar os critérios de avaliação pode significar simplesmente colocar motoristas ainda mais mal preparados na rua.
“Fomos os últimos a saber”
O anúncio feito pelo ministro Renan Filho, no fim de julho, ao podcast do jornal Folha de S.Paulo, surpreendeu o setor. De acordo com Ygor Valença, presidente da Federação Nacional das Autoescolas (Feneauto), a categoria sequer foi chamada para dialogar.
“Tínhamos acabado de retomar a Câmara Temática de Habilitação, do Contran, e a proposta saiu antes mesmo da primeira reunião acontecer”, afirma.
O sentimento generalizado no setor é de exclusão. “Hoje seguimos todas as exigências legais para funcionar: carros com duplo comando, salas de aula, pistas de treinamento, instrutores CLT, no mínimo 10 funcionários… A proposta substitui tudo isso por um modelo improvisado, sem estrutura, mediado por aplicativo. Não é flexibilização. É substituição”, resume Ygor.
O setor não rejeita mudanças. Pelo contrário, propõe que o debate avance para criar um modelo nacional de avaliação mais exigente, que possa, aí sim, permitir mais liberdade de preparação ao candidato, inclusive com redução na carga horária de aula, caso ele esteja bem preparado.
“Hoje a prova é desigual. Em algumas cidades do interior de São Paulo, não tem ladeira. No Recife, tem. Em cidades menores, os exames teóricos podem ser mais fáceis do que outras. A baliza é a mesma há 20 anos. O teste não avalia se o condutor está pronto para a rua.”
Para Valença, o modelo atual de provas precisa ser nacionalmente padronizado, mais longo e mais exigente, como nos países desenvolvidos. “No Japão, a prova prática leva 40 minutos. Eles andam pela cidade com o candidato. Aqui, a moto nem exige marcha nem freio. Como formar um entregador assim?”, questiona.
E o preço?
Boa parte da justificativa do governo para a mudança gira em torno da redução de custos para os condutores. Mas o setor contesta os números. Em Pernambuco, por exemplo, uma CNH para carro e moto custa em média R$ 2.200, dos quais apenas R$ 1.600 ficam com a autoescola. O restante vai para o Detran, exames médicos, psicológicos e documentação.
“É injusto atribuir à autoescola o peso total do custo. Se querem baratear a CNH, há caminhos: desburocratizar processos, rever impostos, modernizar ferramentas – não eliminar a formação”, diz Ygor.
E questiona também a economia prometida com o uso de instrutores avulsos via aplicativo. “Hoje, uma aula prática custa entre R$ 60 e R$ 70. Quanto vai cobrar um motorista de aplicativo? R$ 130 por hora? No fim, o candidato vai pagar mais caro e receber menos.”
Aprender a dirigir? Com quem?
Sem pistas de treinamento, sem estrutura regulamentada e sem controle sobre os instrutores, o setor vê riscos sérios à segurança. Carros sem sinalização, sem duplo comando de freio e com pessoas não habilitadas ensinando em via pública: esse seria o novo cenário.
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