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O Contran pode decidir sozinho?

Publicado pela ABTLP

Entenda como nascem as resoluções do Contran, por que o processo técnico e colegiado é essencial e o que acontece quando uma norma é publicada sem passar pelas etapas previstas — um alerta que voltou ao centro do debate após decisões recentes.

O trânsito brasileiro é regido por um dos arranjos normativos mais completos do mundo. O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) estabelece diretrizes gerais, e as resoluções do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) detalham os procedimentos técnicos, operacionais e administrativos que tornam o sistema viável no dia a dia.

Mas, diante de decisões recentes, uma pergunta voltou a ecoar entre especialistas, entidades e gestores públicos: afinal, o Contran pode decidir sozinho?

Essa não é apenas uma provocação retórica. É um questionamento central para entender a saúde institucional do Sistema Nacional de Trânsito — e, principalmente, a segurança nas vias.

Como uma resolução deveria nascer

O processo de elaboração de uma resolução do Contran é, por norma e tradição, técnico e colegiado. Ele começa quando se identifica uma demanda operacional, jurídica ou tecnológica. Isso pode partir da Senatran, dos Detrans, de entidades de classe ou do próprio Conselho.

A etapa seguinte é conduzida pelas Câmaras Temáticas, grupos compostos por especialistas de diversas áreas:

  • engenharia e segurança viária;
  • medicina e psicologia; transporte, mobilidade e comportamento;
  • direito e governança pública.

Esses especialistas analisam dados, simulam impactos, observam práticas internacionais e constroem uma minuta tecnicamente sustentada. Depois, a proposta segue para:

  • Revisão da Senatran;
  • e deliberação dos conselheiros do Contran;
  • Votação colegiada;
  • Publicação no Diário Oficial.

Esse é o desenho institucional criado para garantir transparência, qualidade técnica, consistência nacional e segurança jurídica.

Como lembra o especialista Celso Mariano.

“O rito do Contran existe para impedir improvisos. É uma blindagem técnica. Quando esse rito é ignorado, toda a lógica do sistema se fragiliza.”

Quando o processo é atropelado

É justamente aqui que o debate contemporâneo ganha força. Nos últimos meses, uma resolução — publicada sem passar pelas Câmaras Temáticas e conduzida diretamente pelo ministro dos Transportes, que também preside o Contran — expôs uma distorção perigosa: uma norma de grande impacto pode ser aprovada sem a participação dos órgãos e especialistas responsáveis por avaliá-la tecnicamente.

Embora legalmente o presidente do Contran tenha prerrogativa para conduzir ou acelerar deliberações, o espírito do CTB é claro: nenhuma resolução deveria nascer de forma monocrática quando afeta diretamente a formação, avaliação ou fiscalização no trânsito.

A questão, portanto, não é apenas jurídica. É institucional.

Celso Mariano, então, faz um alerta. “Quando uma resolução nasce sem debate técnico, ela até pode ser legal — mas não é legítima do ponto de vista da política pública. E legitimidade, em trânsito, significa salvar vidas.”

Por que o país não pode abrir mão do processo técnico

Ignorar o rito normativo cria efeitos imediatos e duradouros.

1. Insegurança jurídica

Órgãos passam a interpretar e aplicar a norma de maneiras diferentes, devido à falta de clareza técnica.

2. Falhas operacionais

Sem avaliação prévia de impacto, prazos, fluxos e responsabilidades podem se tornar inviáveis.

3. Precedente institucional perigoso

Se é possível publicar uma norma sem discussão, abre-se caminho para que outras decisões igualmente complexas também o sejam — tornando o Contran menos técnico e mais político.

Quando se ignora todo esse arcabouço, perde-se o princípio básico da governança do trânsito: a técnica acima da vontade política

Celso Mariano resume com precisão. “Não existe trânsito seguro construído em gabinete fechado. A técnica precisa estar na mesa. Sempre.”

Então, o Contran pode decidir sozinho?

Poder, pode. A lei não proíbe. Mas não deveria. O CTB e o Sistema Nacional de Trânsito foram estruturados para que decisões sejam coletivas, fundamentadas e transparentes.

Quando se segue o processo, o resultado é coerente, aplicável e respeitado. Quando não é, o país entra em um terreno frágil — e quem paga o preço não são os órgãos, mas os cidadãos.

Fonte: Portal do Trânsito | Foto: ssuaphoto para Depositphotos

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