Nesses tempos difíceis, em que os nervos andam à flor da pele, a racionalidade se torna escassa. Não espere que pessoas de bem, normalmente equilibradas e sensatas, sequer entendam o que você diz, se o que você diz colide com o mainstream, que arrasa o bom senso e tudo o que se lhe anteponha, como águas de março, fechando o verão. [A referência ao mês de março não é casual. Algo me diz que é lá o fim da linha – após festas, férias e carnaval – quando a crise e a paciência da população atingirem níveis insuportáveis e estiverem esgotadas as manobras protelatórias que hoje são conduzidas com insuperável desfaçatez pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha.]
Vivi recentemente uma experiência que revela bem a impossibilidade de um diálogo normal em tempos de pensamento único. Num grupo de whatsapp divergi de um amigo quanto ao fato de o ministro Fachin ter, na visão dele, suspendido a tramitação do impeachment. O que eu disse ainda está registrado no meu celular:
“Acho que ele fez muito bem. Era preciso mesmo dar um ‘freio de arrumação’ no pandemônio que vem sendo armado pelo Eduardo Cunha, de olho apenas na manutenção do mandato e do cargo dele. Se a Dilma tiver de sofrer o impeachment – e não me emociono quanto a isso, nem a favor, nem contra – que seja de forma limpa, com observância do devido processo legal, para não criar vítimas nem lançar uma sombra eterna sobre a democracia brasileira. A decisão monocrática do ministro Fachin vai obrigar o STF a intervir e pôr ordem nesse processo. O que é fundamental, na minha opinião.”
As manifestações que ouvi depois disso deram origem às reflexões com as quais abri este artigo. De tanto repetir os mesmos chavões, as pessoas abdicam de raciocinar.
Uma das afirmações recorrentes é a de que o Supremo Tribunal Federal foi “aparelhado” pelo PT. Muitas pessoas dão como certo que por ser indicado por um presidente da República, o ministro do STF há de votar sempre de acordo com os interesses de quem o nomeou, o que está muito longe de ser verdade. Se não, o atual governo não perderia jamais qualquer votação no Supremo (e tem perdido muitas). Afinal, dos 11 atuais ministros, apenas 3 são provenientes de outros períodos presidenciais: Celso de Melo (Sarney), Marco Aurélio (Collor) e Gilmar Mendes (Fernando Henrique). Dos 8 restantes, 3 foram indicados por Lula e 5 por Dilma. Até isso, às vezes, leva pessoas mal informadas a imaginar conspiração, como se a quantidade de ministros nomeados pudesse ser fruto de alguma armação maquiavélica e não de circunstâncias totalmente aleatórias, como doenças, mortes ou aposentadorias – compulsórias ou não.
Aliás, Lula, em seus 8 anos, indicou 8 ministros (1 por ano, média idêntica à de Dilma), só que 5 já se aposentaram, alguns até precocemente, como foi o caso de Joaquim Barbosa que, por sinal, é a melhor prova de que a indicação não representa qualquer garantia de apoio automático do ministro aos interesses do governo que o nomeou.
É fato público e notório que, como relator do processo do “mensalão” e, depois, como presidente da Corte, o ex-ministro Joaquim Barbosa converteu-se num Torquemada e chegou a ser criticado por isso. Dizia-se que, por ser proveniente do Ministério Público, ele frequentemente assumia a postura de promotor, esquecendo a de magistrado, tamanha era a sua sanha persecutória. O fato é que ele acabou levando à cadeia uma parte da cúpula do partido do Governo e vários outros políticos e empresários.
Ainda recentemente, a 2ª turma do STF, com maioria dos ministros indicados na era PT (Teori, Carmen Lúcia e Tóffoli, sob a presidência deste último), decidiu por 5 votos a zero, pela prisão em flagrante do senador Delcídio do Amaral, líder do Governo no Senado – uma decisão duríssima e surpreendente, que representou um dos maiores revezes sofridos pelo Governo, fadado a ter ainda muitos desdobramentos.
E mesmo na já comentada decisão do ministro Fachin – que, sem dúvida, atrasou o processo do impeachment –, ele agiu, claramente, contra os interesses do Palácio do Planalto, que, como é notório, quer acelerar o processo, e não atrasá-lo, porque também já concluiu que o passar do tempo só deteriorará a situação econômica do país e, por consequência, a imagem do Governo perante a opinião pública, fazendo escassear a sua já rarefeita base popular e parlamentar.
A única conclusão possível, amparada nos fatos e confirmada quase diariamente, é que o STF vem cumprindo adequadamente o seu papel de guardião da Constituição e do estado de Direito. E que os tais “ministros do PT” – ao contrário do que levianamente se afirma, sem qualquer base na realidade – longe de favorecer ao governo que os nomeou, vêm agindo com equilíbrio, tanto no Supremo, como na corte eleitoral (TSE). Na realidade, de todos os integrantes do STF, apenas o ministro Gilmar Mendes não tem feito a menor questão de sequer aparentar isenção, assumindo o papel insólito de “líder da oposição” naquela Corte…
Outra grande injustiça que se comete contra o STF é tentar comparar a velocidade com que julga o juiz Sérgio Moro, em Curitiba, com o ritmo aparentemente mais lento do ministro Teori Zawascki, na relatoria dos processos oriundas da Operação Lava Jato, envolvendo agentes públicos que possuem privilégio de foro. Não se deve esquecer que estes são julgados praticamente em instância única pelo STF, cabendo, quando muito, recurso ao pleno do mesmo tribunal. O ministro que julga nessas circunstâncias tem de ter cuidado redobrado para não correr o risco de cometer injustiças. Ao contrário, uma sentença eventualmente mal lançada por um juiz de primeira instância pode ser corrigida pelo respectivo Tribunal Regional, pelo Superior Tribunal de Justiça e, conforme a matéria, até mesmo pelo Supremo Tribunal Federal.
O certo é que, apesar da aparente lentidão, o ministro Teori tem sido implacável na aplicação da lei, com rigorosa observância das normas processuais e do direito de defesa. Ao final, saberemos o que parará em pé, se a pirotecnia de uns ou o rigor técnico de outro.
Eu digo essas coisas e depois fico a me censurar por não conseguir ficar de boa fechada. Poderia perfeitamente me render ao pensamento único e parar de remar contra a corrente. Percebo que acabo incomodando alguns queridos amigos porque coloco em xeque as suas verdades. A melhor maneira de não precisar raciocinar é trabalhar com ideias prêt-à-porter, encaixando as pessoas em categorias pré-definidas. Por isso, eles reagem e carimbam na minha testa o rótulo de petista, ou até mesmo de comunista…
Esta, aliás, é uma ótima oportunidade para esclarecer que não sou petista. Pelo contrário, descobri há pouco tempo, ao renovar o meu título de eleitor (apesar de já estar desobrigado de votar), que ainda consta nos meus registros uma anacrônica filiação ao PSDB, em ficha assinada pelo saudoso Mário Covas. Mas nunca militei no partido. Tanto que, muitas vezes, votei em candidatos do PT, assim como, em outras ocasiões, votei em Fernando Henrique, em Geraldo Alckmin, em deputados federais e estaduais do PSDB. O voto é sempre uma escolha feita em cada momento, em face do quadro político e das opções que nos são oferecidas.
E é verdade, também, que, assim como a maioria dos brasileiros, eu achava que o PT fosse um partido diferente dos demais, sob o aspecto ético, apesar de não concordar com algumas de suas posições, como, por exemplo, quando se recusou a ir ao colégio eleitoral votar em Tancredo contra Maluf, ou quando repudiou a constituição de 88, ou ainda quando não apoiou o Plano Real e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Mas apoiava, com entusiasmo, a suas políticas sociais compensatórias. Sempre achei possível e desejável um programa de distribuição de renda coordenado pelo Estado, como o governo Lula praticou, produzindo resultados espetaculares durante um bom tempo. Os que ainda acham que isso é “coisa de comunista” precisam conhecer melhor o pensamento de MILTON FRIEDMAN, Nobel de Economia de 1976, ícone do neoliberalismo, assim como a sua Escolha de Chicago, na qual lecionou durante muitos anos.
O erro nunca esteve nesta política, mas no fato de ela não ter sido acompanhada de estímulos aos investimentos para lhe dar sustentabilidade e de não se ter dado o peso devido às condições internacionais, extremamente favoráveis, sobretudo quando estas começaram a mudar. Isso para não falar no erro trágico e imperdoável de se ter induzido ou tolerado, pouco importa, um processo de assalto aos recursos públicos, em todos os níveis, como forma de perenizar o partido no poder.
Esta é uma diferença fundamental: percebo que muitas pessoas são contra o PT muito mais pelos seus acertos do que pelos seus erros, que foram enormes. Talvez fossem capaz de engolir até a corrupção, mas não perdoam a ousadia de terem sido confrontados com a demonstração prática de que outro caminho é possível…
Sob este aspecto, sinto-me até muito mais traído pelo PT do que aqueles que nunca votaram ou acreditaram nele, por tudo o que já se revelou com os processos do “mensalão” e, agora, do “petrolão”; e por tudo o que ainda deverá ser revelado, se e quando forem abertas as caixas pretas do BNDES e dos Fundos de Pensão das empresas estatais.
Além do mais, não nutro a menor simpatia pelo governo Dilma, que, independentemente de ser ou não corrupto, tem demonstrado, cada vez mais, uma incompetência constrangedora.
Sim, seria preferível que pudéssemos nos livrar desse governo o mais rapidamente possível. Uma renúncia, como gesto de grandeza, a possibilitar rapidamente a costura de um governo de transição e de união nacional, seria, a esta altura, a solução dos sonhos de quase todo o povo brasileiro.
Não sendo isso possível – não se deve esperar nada grandioso desse governo, a não ser os seus erros – resta o impeachment, como única saída legítima, nos marcos desse presidencialismo de coalizão a que estamos condenados, porque votamos mal nos dois plebiscitos que tivemos para deliberação sobre sistema de governo. Vivêssemos sob o parlamentarismo, esse governo já teria caído há muito tempo, sem qualquer trauma.
Enquanto isso não acontece – e afastadas as ideias malucas de intervenção militar que, felizmente, não encontram eco nas Forças Armadas – precisamos nos debruçar sobre o processo de impeachment, cuidando para que ele se dê com estrita observância do rito previsto na Constituição e na lei. É disso que se trata neste momento e foi sobre isso a discussão que se estabeleceu no grupo de whatsapp, a que me referi no início.
O que sustento – na boa companhia de muita gente séria neste país e, espero, também da maioria do STF – é que não é possível termos um processo decente de impeachment sob a coordenação do atual presidente da Câmara dos Deputados que, além de tudo, é o segundo nome na linha sucessória da presidente da República, logo após o Vice-Presidente.
Ele abastardou de tal maneira o processo, transformando-o em moeda de troca da sua própria permanência no cargo – num dos momentos mais baixos e sórdidos da história do Parlamento brasileiro – que o próprio processo só poderá seguir adiante quando o seu rito for, não aquele determinado pelo deputado e adaptado às suas conveniências, mas o definido pelo Supremo Tribunal Federal, no processo que está sob a relatoria do ministro Fachin e que será apreciado pelo plenário, segundo consta, na próxima 4ª feira.
O risco que se corre, se não for removida a pedra no meio do caminho, representada pela presença indesejável do deputado Eduardo Cunha neste enredo, é que a própria opinião pública começará a perder a confiança e o entusiasmo na solução constitucional, ao ver que, mais uma vez, negociam pelas suas costas interesses inconfessáveis. O cheiro de coisa podre começa a ficar insuportável. O resultado pífio da manifestação do último domingo – a mais fraca da série iniciada em junho de 2013 – já é reflexo deste sentimento.
E, como sabemos, sem forte apoio popular, o impeachment perderá legitimidade e, talvez, sequer aconteça. Se acontecer, será porque o Supremo Tribunal Federal terá cumprido o seu papel, garantindo o due process of law e afastando do caminho figuras deletérias que comprometem e maculam a atuação da cidadania.
Geraldo Vianna é advogado, consultor em Transportes, ex-presidente da NTC&Logística e Diretor da CNT.
Fonte: NTC&Logística
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